Sobre a arte popular como moda e a artista portuguesa que, por gostar de fazer arte, foi artesã de mil ofícios.
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Vestir como Almodóvar
Em casa dos meus avós, havia uma espécie de altar do Pedro Almodóvar. Era um cantinho ao lado de uma pequena televisão, onde a minha tia guardava com toda a preciosidade os seus cinco filmes preferidos - todos dele! Dizia que numa vida anterior, teria sido uma mulher-Almodóvar.
Mais nenhum filme, livro, peça de arte chegou àquele lugar! As mulheres, nas suas vidas e perdas, eram fogo e sal e corpos de água, feitos por tempestades que passam pelo mesmo lugar durante muitos anos. Dentro das suas cozinhas e quartos, a efervescência chegava também às cores, formas e texturas.

Este cuidado pela expressividade está na casa de cal, em Dolor y Gloria e em qualquer parede do Todo Sobre Mi Madre – sobretudo nos vermelhos irrepreensíveis de um momento de espera, à porta do teatro. Em La Voz Humana e La Habitación de al Lado, as personagens de Tilda Swinton vivem nas casas mais deliciosamente decoradas, onde encontramos vermelhos, amarelos e azuis primários a pintalgar cada divisão. E onde suspiramos pela mais maravilhosa caixa de lata da Dolce & Gabanna, usada como um baú de gaveta.


Toda esta curadoria transborda para as roupas. As suas personagens vestem-se de Prada e Balenciaga, Loewe e Chanel, Yves Saint Laurent e Marc Jacobs, muitas vezes nos seus momentos mais caseiros. O feminino-Almodóvar está no amanhar o peixe inteiramente vestida de peças haute couture, com a competência de quem manuseia a faca como talento de família ancestral.

Não se satisfaz em deixar as suas fúrias, paixões e vontades adormecidas – vem expressá-las das formas que lhe são acessíveis e possíveis. Mesmo num momento absurdo, acolhe no seu sofá da sala vários femininos-Almodóvar, pessoas que se juntam que nem musas, organizadas que nem um quadro enquanto riem e choram. Mas nunca sem um fundo de papel de parede ou azulejo, um acessório exagerado castiço, ou um contraste de padrões entre aventais e fatos estruturados.

O feminino-Almodóvar disponibiliza-se para os corpos e paredes que precisarem de o acolher. É a vontade de gritar, de vestir lantejoulas para ir ao café do bairro, de guardar coisas bonitas com a seriedade de um colecionador, de ocupar um palco impulsivamente. Ou a chuva, um pátio, ou o quarto ao lado.
Tem prazer no exagero, na teatralidade, na abundância do dia-a-dia, e encontra nas raízes de família uma espécie de mitologia, onde cada uma carrega todas as mulheres que a antecederam.

Entre colaborações de guarda-roupa com Gianni Versace e Jean Paul Gaultier, Almodóvar deixa-nos pequenas estrelas-guia, para uma feminilidade que nos possa ser mais familiar. Seja porque a encontramos na coragem das decisões que tomamos, no trazer arte para o dia-a-dia que nos rodeia, ou nas transformações que vamos precisando de acolher!
Porque como diz Agrado, a minha mulher-Almodóvar por excelência, em Todo Sobre Mi Madre, “somos mais autênticas quanto mais nos parecemos ao que sonhamos ser”.

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