Sobre a arte popular como moda e a artista portuguesa que, por gostar de fazer arte, foi artesã de mil ofícios.
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Sarah Affonso & a pergunta do pássaro bordado
No Wereldmuseum, em Amsterdão, há um pequeno pássaro em veludo bordado a missangas e contas de vidro. Acompanha-o um painel que diz:
“Traje tradicional ou moda?
Os museus mostram frequentemente roupa como traje tradicional ou popular, o que soa definido, imutável. Ao contrário, a roupa dita ocidental é vista como algo que muda rapidamente e é sensível a tendências – ou seja, moda. [...] É uma pergunta pertinente: o que faz de algo moda?”

Este pássaro, originário da tribo norte-americana Tuscarora como forma de arte, fez-me lembrar o popular português e as designações que damos à arte dependendo de onde está. E fez-me lembrar uma artista que desafiou estas linhas, aqui na nossa terra: a Sarah Affonso (1899 – 1983).
A Sarah fez tudo! Ilustrou livros infantis (incluindo A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner), desenhou azulejos para a sua casa, fez retratos dos seus mais queridos, pintou a mitologia portuguesa dos barcos, dos santos, das procissões.

Enquanto pintora, Sarah retratou de forma sonhadora as suas pessoas, o seu campo e a história das vivências e memórias do quotidiano minhoto.
Não porque as exagerava, mas sim porque as retratava com uma imaginação muito precisa – aquela de quem presta muita atenção àquilo que gosta muito. Era tão cuidadosa nesse retrato que os seus desenhos do povo castro-laboreiro se tornaram um registo científico e etnográfico desse lugar. Por exemplo, como reflete a curadora do Museu Calouste Gulbenkian, Ana Vasconcelos, pela forma como incluiu os marcadores de manteiga e os arreios para atar fardos de palha.

Este carinho pelos objetos tradicionais está na composição dos seus quadros, mas também na criação de peças próprias – Sarah fazia botões e alfinetes de cerâmica, pintava lengalengas e quadras populares para oferecer, bordava figuras e histórias da imaginação popular em tecido.
Ver os seus quadros, integrados no movimento modernista e parte dos círculos artísticos da altura, ao lado deste tipo de peças raramente vistas como arte, convoca a pergunta com que começámos. O que faz do vestido de batizado bordado à mão uma peça de moda? Ou os botões e alfinetes de cerâmica, em forma de cavalos e sereias e cozidos em casa?

Classificar artesanato como moda pode passar por questões de utilidade, projeção ou exclusividade. Pode reconhecer os ofícios tradicionais como formas de conhecimento e arte, pela sua intencionalidade artística e pelas técnicas exímias, inovadoras, experimentais. (Se não fosse o tear, possivelmente não haveria computadores – os primeiros programas foram mesmo inspirados no entrelaçamento de fios!).
Mas pode também expor a arte popular e os seus fazedores às pressões do mundo da moda – a rapidez, as escalas de produção inadequadas, os ideais de estilo, ou até desafiar o sentimento de pertença que o figurado e o saber-fazer caseiro dão ao seu povo.

Neste trapézio de questões, quero voltar à Sarah para alguma luz. Imaginá-la a convidar-nos a encontrar estilo próprio no gosto de saber fazer à mão:
- Podemos não conseguir fazer um vestido de alta-costura, mas porque não fazer um alfinete de barro, inspirado numa lenda da nossa terra, que dê uma graça a uma peça de cerimónia?
- Podemos não saber fazer enormes toalhas de renda, mas porque não acrescentar um ou dois detalhes bordados à mão à nossa fronha preferida?
- Podemos não ter tempo para fazer uma prendinha à mão, “que tem mais significado e tudo”, mas porque não oferecer uns poucos botões feitos por nós, em barro, para que possam renovar uma peça antiga com algo castiço?
- Podemos não ter imaginação para um quadro lá para casa, porque não olhar para a nossa mitologia tradicional – de memórias do mar, de santos milagreiros, de orações regionais, de proteção divina, de lengalengas e poesia?

O que mais agradeço à Sarah não é necessariamente ter posicionado a arte popular no circuito profissional das artes plásticas. Talvez simplesmente por querer continuar a fazer arte quando deixou de pintar, a Sarah continuou a usar aquilo que é artístico - uma atenção carinhosa pelo lugar e histórias que a rodeavam, uma imaginação dignificante na forma de os representar, e o querer fazer à mão como artesã.
Agradeço-lhe essa continuação, essa curiosidade de quem gosta de fazer e esta pequena leitura do seu trabalho: mais coragem de fazer e vestir coisinhas feitas à mão como detalhes de moda pessoal, conhecendo as suas histórias, estejam ou não nas tendências.
Pergunto-me, por fim, se pássaro bordado de tradição Tuscarora também concorda.

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